terça-feira, 2 de abril de 2019

Diário de Análise


Como se acaba o primeiro Diário de Análise?
Como se começa?
Um diário não é uma sessão. Uma sessão não é a soma de uma vida. Às vezes, fragmentos que são coletados, cartas que são relidas e reescritas ou quartos que revisitamos, as vezes abrindo as gavetas, janelas e armários.
Um Diário é um acúmulo ou desacumulo de sombras, luzes e cores.
Freud dizia que diários são insuficientes para relatarmos tudo o que produzimos em uma sessão de análise. Li isto em um livro chamado "Quando Lacan me adotou", em que o autor escreve e descreve no livro as suas sessões de análise.
Segundo Freud, seria impossível colocar em palavras o que sentimos na totalidade dentro de um curto espaço de tempo, em que dura uma sessão de análise. Tempo em que estamos deitados em um divã ou sofá.
Já Lacan afirma que na análise estão presentes pelo menos três atores. O analisado, o terapeuta e aquele que fala suas angústias.
Será?
Como medir ou saber?
Na dúvida, escrevo e transcrevo, transbordo-me, e em um retrato, aquilo que é abstrato embora provoque dor ou alegria, ganha contorno.
A flor só nasce e mostra toda sua beleza se nós plantarmos, cuidarmos e deixarmos o tempo fazer a sua floração.
Tento e deixo que as palavras falem por si mesmas em pensamentos “desordenados”, mas, de alguma maneira, livres para ganhar asas e sair da minha gaiola.
Afinal, enfim, fala o inconsciente em seu ordenamento pouco lógico.
Do avesso às avessas, vai desenrolando um novelo que, por vezes, embola e vira nó.
A claridade ou o clarão, acontece de encontro em encontro, de fala em fala, de idas e vindas. Tudo feito de forma mediada por palavras truncadas, frases soltas e silêncios profundos de quem ouve e de quem fala.
É preciso tirar os laços e suturar os pontos. Pouco a pouco. Nem sempre cicatriza e os pontos arrebentam deixando sair o sangue represado. Fluxo da vida.
Porque sangue, senão memória.
Memória do tempo ainda que tempo seja sempre algo que dizemos que não ter mais, ou pelo menos, temos muito pouco.
Temos em nossa mente verdadeiras cerimônias.
Guardados em nossas "tranças mentais", os convidados vão aparecendo e sentando-se a mesa. Alguns falam mais e outros gritam. Outros, mudos, seguem observando e comendo.
Alguns males levantam os olhos enquanto outros, levantam da mesa, batem a porta e vão embora. Difícil levar a refeição até o final. Às vezes ficamos sem degustar o prato principal.
A sineta tocou encerrando a cerimônia.
Por vezes, parece que ficamos na entrada ou, apenas, no tira gosto.
As crianças aparecem e parece que entre elas, alguma coisa soa familiar. Olhamos de longe com os olhos do presente como se estivéssemos sentados no banco de uma praça qualquer. 
Apenas observando as crianças. Olhamos com os olhos do presente. Tiramos os óculos e limpamos as lentes. Assim, como a lupa nos aproxima do que está fora, nossa fala registra o que está dentro. Todas nossas marcas. Todas juntas formam o que somos.
O quebra-cabeça vai formando nosso desenho apesar das peças que aparentemente "não se encaixam". Vamos abrindo os armários e renovando nosso guarda roupa, jogando fora as roupas velhas que teimam em vir nos agasalhar. Ainda. Vamos percebendo que é possível comprar roupas novas, alargar outras ou apertar algumas. Somos a soma de todas elas.
Nosso vestuário de diferentes modas e épocas.
Teimamos em mudar de estação revisitando antigas folhas envelhecidas e caídas, pois nos foi ensinado seguir sempre e em frente. Ao sucesso! Porque não comemorar nossos fracassos? É exatamente ali que estão os nossos maiores aprendizados. Ali estão as nossas ferramentas para compreensão mais ampla de nós mesmos. Difícil viver achando que temos que acertar sempre e quando não "damos certo" a culpa é somente nossa.
Vivências da vida vivida. A verdade é que nós, em uma sessão de análise colocamos à mesa, todos nossos sabores, aromas e temperos. Convidamos nós mesmos para degustação.
Um rodízio quando tudo se liberta e fica vivo. A La Carte, quando sabemos sobre o que queremos falar. Destravamos nossos baús, tesouros e segredos. Entre um gole e outro de reflexão, vamos sentindo se temos condições de mergulhar mais fundo e buscar a pérola dentro da ostra na nossa profunda imensidão.
Ser de tantas memórias, afetos e gargalos...
Vamos descendo e batendo as nossas nadadeiras. A princípio até onde conseguimos enxergar tudo a nossa volta. Pouco a pouco tudo vai escurecendo. Estamos indo adentrando nas profundezas nunca visitadas. Vai ficando frio. Já não sabemos se temos ar suficiente para voltar a superfície.

As sensações, memórias, marés e ondulações já nos conduzem ao sabor do que vem e não vem à tona. Mergulhamos para encontrar nosso navio naufragado.  Podemos tentar segurar na corda e descermos apenas com nossas nadadeiras e nossas melhores máscaras...
É a segurança do que está ao nosso alcance ou a pressão que suportamos. Por outro lado, podemos mergulhar de escafandro com o ar sendo bombeado de cima, vindo do barco e auxiliado por alguém que está ali se algo "der errado" e precisarmos voltar a superfície. O terapeuta.
O certo é que a cada subida a superfície que marca o final de uma sessão ou etapa, marca também o nosso renascimento.
Fazer análise tem sido isto. Um mergulho profundo e mediado entre a palavra e o gesto. Nosso e daquele que nos dá a mão e conduz pelos labirintos de nós mesmos. Recomendo a leitura.

José Vicent Payá Neto
Rio de Janeiro
02 de abril de 2019