Como se acaba o primeiro
Diário de Análise?
Como se começa?
Um diário não é uma sessão.
Uma sessão não é a soma de uma vida. Às vezes, fragmentos que são coletados,
cartas que são relidas e reescritas ou quartos que revisitamos, as vezes
abrindo as gavetas, janelas e armários.
Um Diário é um acúmulo ou
desacumulo de sombras, luzes e cores.
Freud dizia que diários são
insuficientes para relatarmos tudo o que produzimos em uma sessão de análise.
Li isto em um livro chamado "Quando Lacan me adotou", em que o autor
escreve e descreve no livro as suas sessões de análise.
Segundo Freud, seria
impossível colocar em palavras o que sentimos na totalidade dentro de um curto
espaço de tempo, em que dura uma sessão de análise. Tempo em que estamos
deitados em um divã ou sofá.
Já Lacan afirma que na análise
estão presentes pelo menos três atores. O analisado, o terapeuta e aquele que
fala suas angústias.
Será?
Como medir ou saber?
Na dúvida, escrevo e transcrevo,
transbordo-me, e em um retrato, aquilo que é abstrato embora provoque dor ou
alegria, ganha contorno.
A flor só nasce e mostra toda sua beleza se nós plantarmos, cuidarmos e deixarmos o tempo fazer a sua floração.
Tento e deixo que as
palavras falem por si mesmas em pensamentos “desordenados”, mas, de alguma
maneira, livres para ganhar asas e sair da minha gaiola.
Afinal, enfim, fala o
inconsciente em seu ordenamento pouco lógico.
Do avesso às avessas, vai
desenrolando um novelo que, por vezes, embola e vira nó.
A claridade ou o clarão,
acontece de encontro em encontro, de fala em fala, de idas e vindas. Tudo feito
de forma mediada por palavras truncadas, frases soltas e silêncios profundos de
quem ouve e de quem fala.
É preciso tirar os laços e suturar
os pontos. Pouco a pouco. Nem sempre cicatriza e os pontos arrebentam deixando
sair o sangue represado. Fluxo da vida.
Porque sangue, senão
memória.
Memória do tempo ainda que
tempo seja sempre algo que dizemos que não ter mais, ou pelo menos, temos muito
pouco.
Temos em nossa mente verdadeiras cerimônias.
Guardados em nossas
"tranças mentais", os convidados vão aparecendo e sentando-se a mesa.
Alguns falam mais e outros gritam. Outros, mudos, seguem observando e comendo.
Alguns males levantam os olhos
enquanto outros, levantam da mesa, batem a porta e vão embora. Difícil levar a
refeição até o final. Às vezes ficamos sem degustar o prato principal.
A sineta tocou encerrando a
cerimônia.
Por vezes, parece que
ficamos na entrada ou, apenas, no tira gosto.
As crianças aparecem e
parece que entre elas, alguma coisa soa familiar. Olhamos de longe com os olhos
do presente como se estivéssemos sentados no banco de uma praça qualquer.
Apenas observando as
crianças. Olhamos com os olhos do presente. Tiramos os óculos e limpamos as
lentes. Assim, como a lupa nos aproxima do que está fora, nossa fala registra o
que está dentro. Todas nossas marcas. Todas juntas formam o que somos.
O quebra-cabeça vai formando
nosso desenho apesar das peças que aparentemente "não se encaixam".
Vamos abrindo os armários e renovando nosso guarda roupa, jogando fora as
roupas velhas que teimam em vir nos agasalhar. Ainda. Vamos percebendo que é
possível comprar roupas novas, alargar outras ou apertar algumas. Somos a soma
de todas elas.
Nosso vestuário de
diferentes modas e épocas.
Teimamos em mudar de estação
revisitando antigas folhas envelhecidas e caídas, pois nos foi ensinado seguir
sempre e em frente. Ao sucesso! Porque não comemorar nossos fracassos? É
exatamente ali que estão os nossos maiores aprendizados. Ali estão as nossas
ferramentas para compreensão mais ampla de nós mesmos. Difícil viver achando
que temos que acertar sempre e quando não "damos certo" a culpa é
somente nossa.
Vivências da vida vivida. A
verdade é que nós, em uma sessão de análise colocamos à mesa, todos nossos
sabores, aromas e temperos. Convidamos nós mesmos para degustação.
Um rodízio quando tudo se
liberta e fica vivo. A La Carte, quando sabemos sobre o que queremos falar.
Destravamos nossos baús, tesouros e segredos. Entre um gole e outro de
reflexão, vamos sentindo se temos condições de mergulhar mais fundo e buscar a
pérola dentro da ostra na nossa profunda imensidão.
Ser de tantas memórias,
afetos e gargalos...
Vamos descendo e batendo as
nossas nadadeiras. A princípio até onde conseguimos enxergar tudo a nossa
volta. Pouco a pouco tudo vai escurecendo. Estamos indo adentrando nas
profundezas nunca visitadas. Vai ficando frio. Já não sabemos se temos ar
suficiente para voltar a superfície.
As sensações, memórias,
marés e ondulações já nos conduzem ao sabor do que vem e não vem à tona.
Mergulhamos para encontrar nosso navio naufragado. Podemos tentar segurar na corda e descermos
apenas com nossas nadadeiras e nossas melhores máscaras...
É a segurança do que está ao
nosso alcance ou a pressão que suportamos. Por outro lado, podemos mergulhar de
escafandro com o ar sendo bombeado de cima, vindo do barco e auxiliado por
alguém que está ali se algo "der errado" e precisarmos voltar a
superfície. O terapeuta.
O certo é que a cada subida
a superfície que marca o final de uma sessão ou etapa, marca também o nosso
renascimento.
Fazer análise tem sido isto. Um mergulho profundo e mediado entre a palavra e o gesto. Nosso e daquele que nos dá a mão e conduz pelos labirintos de nós mesmos. Recomendo a leitura.
José Vicent Payá Neto
Rio de Janeiro
02 de abril de 2019